Agora que o pior acontecera, eu deixava de ter de continuar a viver no medo de ver o pior acontecer. É assim que a razão, abalada, formula a sua lógica ferida. (John Banville, Eclipse)

 

14 julho 2006

Chinaski e Hemingway

Tal como havia prometido no blogue que serve de Casa-mãe, aqui fica um excerto do conto “Não tenho pescoço e sou mau com’às cobras” de Charles Bukowski, que é parte integrante do livro A sul de nenhum norte (pp. 242-243):

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O bar era porreiro. Sentei-me a uma mesa com Vicki e disse-lhe que ia partir aquilo tudo. Quando eu era novo costumava partir os bares todos, agora limito-me a dizer que quero parti-los.
(…)

Sentei-me à mesa com a Vicki e mandei vir mais algumas cervejas. Tomei-lhe a cabeça entre as mãos e virei-lha na direcção da empregada:
– Olha como ela é bonita, caramba! Não é bonita?
Nessa altura, Ernie Hemingway ergueu-se, com aquela barba de rato branco que ele tem.
– Ernie – disse eu –, pensei que tinhas estoirado a cabeça com uma espigarda!
Hemingway desatou a rir.
– Que queres beber? – perguntei eu.
– Eu é que pago – respondeu ele.
Ernie foi buscar bebidas para nós e sentou-se. Parecia um bocado mais magro.
– Fiz a crítica do teu último livro – disse eu. – Disse mal. Desculpa lá.
– Não faz mal – disse Ernie. – Gostas da ilha?
– É boa para eles – respondi.
– E isso quer dizer…
– Que o público tem sorte. Tudo lhe agrada: cones de gelados, concertos rock, as canções, a libertinagem, o amor, o ódio, a masturbação, os cachorros quentes, danças country, Jesus Cristo, patins, o espiritualismo, o capitalismo, o comunismo, histórias aos quadradinhos, Bob Hope, esqui, discussões-pesca-assassínio-bowling, tudo, seja o que for. Não estão à espera de grande coisa e não conseguem grande coisa. “É uma gangada ennorme”.
– Mas que grande discurso.
– O público é que é bom.
– Tu a falar pareces um personagem dos primeiros livros do Huxley.
– Acho que estás enganado. Eu sou um desesperado.
– Mas – disse Hemingway –, as pessoas tornam-se intelectuais para fugirem ao desespero.
– As pessoas tornam-se intelectuais porque têm medo e não porque se sintam desesperadas.
– E a diferença entre um gajo que tem medo e um desesperado é…
– No vinte! – respondi. – É um intelectual!... O meu copo…
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