Agora que o pior acontecera, eu deixava de ter de continuar a viver no medo de ver o pior acontecer. É assim que a razão, abalada, formula a sua lógica ferida. (John Banville, Eclipse)

 

17 julho 2006

A teoria e o carro (Capítulo I)

O tribunal fechara naquele dia anunciando as férias de Verão – época aproveitada pelos zelosos juízes do mal alheio para dividir o tempo entre banhos e o estudo minucioso dos processos que os sufocavam por tamanha pilha amontoada em cima das suas doutas secretárias de mogno.
Estava uma tarde quente e húmida que transformara a recepção do meu escritório, à Fernão de Magalhães, num pequeno cubículo de sauna sem o odor de folhas de eucalipto, onde se esconde por detrás de uma robusta parede de granito o meu asséptico gabinete.
Despachei um cliente, arguido num processo de peculato, em apenas trinta minutos. Henrique Oliveira – o Henrique do O. – esperava-me, decerto, boiando no seu próprio suor, após – conjecturava – uma conversa anódina, de mera circunstância, com Raquel, a minha secretária de pernas esguias e busto generoso. Henrique combinara este encontro de véspera, vindo de Felgueiras. Era hoje, tinha de ser hoje, culpava-me por uma terrível sucessão de alguns convívios lamentavelmente falhados pelos compromissos que o meu trabalho de advogado me obrigara durante o ano judicial.
«Diligências…», desculpava-me sempre.
Desta feita lá iríamos, era certo, prometera-lhe uma ida ao Ourigo, de Porto Seco bem gelado e uma tábua de queijos recheada com os cinco do costume, que nos emprestavam por uns tempos um pouco de massa adiposa jamais regateada.
Fechei a pasta de couro, pousei a Mont Blanc, despi a gravata, vesti o blazer e encontrei o Henrique com o seu Moleskine a garatujar umas notas perfeitamente ininteligíveis.
Despedi-me de Raquel até ao dia seguinte, erguendo o indicador direito para o meu Communicator apontando à tecla vermelha: «Por hoje, finito
Por fim saímos. Teria chamado um táxi não fosse a insistência de Henrique em nos fazer transportar à Foz na sua 4L cor de ferrugem, esparsamente mosqueada com uns tons de branco que há muito fugira.

«Diz à mamã que estarei em casa por volta das dez», disse Henrique à sua filha, a quem ligara pelo seu telemóvel. «De qualquer forma diz-lhe para não ficar preocupada. Eu ligo-lhe antes de iniciar a viagem de regresso. Adoro-vos!». Desligou.
«Eh pá! Estás formidável!», atirou-me Henrique quando se achou definitivamente entregue ao nosso habitual convívio de actualização das nossas vidas recentes.

«Há quanto tempo não trocas a suspensão?», disse eu, depois da milionésima cabeçada no vidro do meu lado direito.
Sem resposta. Henrique assobiava entremeando com uns encómios, por vezes sarcásticos, à paisagem degradada da Invicta. Do nosso lado esquerdo, pelo vidro avelhado e sensivelmente retorcido da 4L, já se podia vislumbrar o mar que se agitava contra os muros de pedra lodosa reverberando tons dourados pelo intenso sol de Verão. «Bonito espectáculo!», não se cansava de dizer. Era este o silêncio contemplativo que se abatia sobre nós, como num diálogo surdo, enquanto o destino de uma tarde bem passada não se fazia anunciar.
Quebrei o enguiço quando finalmente lhe perguntei:
«Olha lá, o que é que apontavas nesse teu caderninho preto quando te encontrei na sala de espera do meu escritório? Escrevias de forma tão enérgica que…»
«É uma teoria. Uma teoria nova que carece de alguns empirismos!», disse-o de uma forma tão resoluta como travessa, pois nos seus olhos vislumbrei uma centelha, que ousava manter desde os nossos tempos de meninice, quando insinuava o cometimento de uma típica traquinada. E prosseguiu:
«O teu cliente… Aquele mal-encarado que saiu do teu gabinete, não estava sozinho, pois não?»
«Não, estava com a mulher!», disse-o tentando perscrutar o fio condutor dos seus pensamentos. «Aliás, deves ter convivido com a senhora... Estiveste sentado junto dela, não?»
«Pois…», diz ele de forma encabulada. «Mal falámos.» «Aquele gajo é um anormal!»
«É um debochado de um arrivista, com muita massa, que se julga com o rei na barriga e convencido de que tudo no mundo tem o seu preço.» Atirei sem fazer cerimónias, como era apanágio das nossas, agora cada vez mais raras, conversas.
«Bem», retorquiu, «reparei no ar de infelicidade daquela mulher», ao mesmo tempo que suspirava como que desafogando um impotente lamento. Uma dolorosa rendição perante o aparentemente inesgotável espectro por que se manifesta a maldade humana. E ele disse:
«Pude-lhe ver uma nódoa negra que aqueles muito convenientes óculos escuros deixaram escapar».
«Típico», disse eu. «O gajo trouxe-a só para assinar uns papéis… Caso contrário viria com uma das suas espampanantes conquistas para ostentar o lado bom da vida – e da sua fortuna – a este advogado celibatário que por acaso é teu amigo.»
«Sim, estou a ver o género…», sentenciou Henrique. «Mulher oficial, uma batelada de filhos, muitas amantes engatadas em serviços nocturnos e… o carro, porventura sabes que carro trouxe?»
«Não sei!», asseverei. «Vejo-o sempre com carros diferentes.»
«Então, hoje, trouxe um daqueles vermelhos muito vistos pelos meus lados, um Ferrari, lia-se 599… humm… qualquer coisa.»
«OK, mas diz lá», disse eu retomando a questão que me intrigava, «ainda não me falaste das notas que tiraste aí para o teu Moleskine!»
«Pois, já te disse que era uma teoria.», disse Henrique de forma enfática. «Vou-te contar uma história que me ocorreu há uns tempos lá no meu gabinete do tribunal de Felgueiras. Ouve, e aplica-a a quem conheças.»

Chegámos ao Ourigo. Combinámos o reinício da explanação da sua teoria apenas após o primeiro trago de Porto e já com alguns pedaços de Rambol – sempre o nosso pecado inicial – bem acomodados no bucho.

(continua)

2 comentários:

Susana Viegas disse...

Bom texto. Espero a continuação.

Anónimo disse...

Farei por isso, meu caro Sérgio.
Um abraço,
André