Agora que o pior acontecera, eu deixava de ter de continuar a viver no medo de ver o pior acontecer. É assim que a razão, abalada, formula a sua lógica ferida. (John Banville, Eclipse)

 

23 julho 2006

A teoria e o carro (Capítulo II)

A história que se segue foi-me contada nessa mesma tarde por Henrique. Cumpre-me aqui descrevê-la, se bem que os factos sejam de sua inteira responsabilidade.

Numa manhã de um forte nevoeiro, marcava o relógio trinta minutos após as sete da madrugada, Henrique era acordado por uma forte buzinadela impertinente e insaciável que nem a almofada que colocara em cima da cabeça o fizera insensibilizar perante tão estrídulo concerto. Abriu a janela, preparando-se para vociferar e puxar dos seus galões de delegado do Ministério Público, quando vislumbrou um ser anafado e de faces rubicundas, tingidas de um rosa fúchsia, que assim que a guilhotina se entravou nas patilhas de segurança lhe dirigiu as palavras, ao mesmo tempo que soltava a mão da buzina:
«Henrique Oliveira…?»
Henrique ainda acabrunhado disse: «Sim», disse-o num tom empolado, como que avisando a premente chegada de um estado de cólera, «o que vem a ser esta merda?». E continuou: «Sabe que horas são? Olhe que posso mandar pren…», deteve-se por um súbito avivar da memória. E disse:
«Sr. Procurador…?». O fogo da ira apagou-se de imediato, transformando-se nas cinzas do arrependimento pré submissão.
«Preciso der falar consigo», disse o procurador. «De imediato, se não o incomodar…»
«Pulha», disse para si mesmo Henrique, «sempre com o pau na mão e com o queijo na outra».
«Vou ter consigo ao seu gabinete daqui a trinta minutos», disse o procurador, já de costas voltadas dirigindo-se ao café que acabara de abrir.

Por entre pilhas de processos que decoravam o gabinete numa babilónia de morosidades processuais, Henrique, de café tomado e desperto como um mocho matinal, indaga sobre os propósitos de tão honrosa, inesperada e… confessava-se insuportável visita:
«Sr. Procurador, a que devo a honra de tão ilustre visita?»
«Deixe-se de mesuras, Henrique», atirou logo o Procurador, «que o tempo e o assunto não estão para isso».
«Bem…», pôde dizer Henrique perante a primeira carga de tão idiossincrática ira do Procurador, «faça o favor de avançar, Sr. Procurador!»
«Bom», marcava o Procurador, como que dizendo: «Vê agora se te calas um pouco e me deixas falar». E prosseguiu:
«Os gajos da Judite dão-me cabo da paciência». Era conhecido o ódio de estimação que o procurador guardava em relação a quem, no seu entender, não é das leis mas que se apropria ilicitamente delas.
«Há cerca de um ano foi interceptada uma mensagem de correio electrónico que continha uma pormenorizada descrição sobre um homicídio», disse o Procurador ao mesmo tempo que com um ligeiro esgar, tão característico, impedia Henrique de sequer entoar uma simples interjeição. Este ficou-se pelas súbitas mudanças de expressão facial… era o mínimo.
«A mensagem era supostamente dirigida a uma mulher», disse o Procurador. «Talvez amante do perpetrador do crime. Todavia, tanto a origem como o destino são indecifráveis. Foi utilizado um servidor anónimo situado nas Ilhas Virgens Britânicas, o qual fornecia o alojamento das referidas contas de correio, assim como de plataforma para a sua utilização.»
Henrique mantivera-se calado. Aliás, pensara jocosamente, esquecera-se do guarda-chuva em casa para enfrentar uma possível tempestade salivar se, com as suas interrupções, irritasse o Procurador. Este prosseguiu:
«Sabemos, porém, que o possível assassino é daqui desta terra…» proferiu o Procurador, revelando uma aparente amnésia, «do Marco».
«Felgueiras», corrigiu Henrique.
«Ou isso», disse o Procurador, enrubescendo ainda mais. «Confundo sempre esta salgalhada de terras aqui para cima».
«Bem, como dizia…», disse o Procurador, parecendo perdido.
«Dizia que tem provas que o tal homem era daqui da terra», recordou Henrique. «De FELGUEIRAS!», disse-o sem se furtar a uma ligeira repreensão que, decerto, passaria incólume.
«Pois…», continuou o Procurador. «Portanto, sabemos que ele é de… aqui e que é um proprietário de uma fábrica de calçado».
Assim que o procurador acabou de proferir esta frase, Henrique soltou uma gargalhada que não conseguiu reprimir, e disse, por entre risos e lágrimas:
«Já sei… quem poderá ser… com essa descrição tão pormenorizada…», o sarcasmo foi mais forte que Henrique.
«Como?», atirou o Procurador sem perceber o motivo da gargalhada.
«Ó Sr. Procurador, com essa descrição já conseguimos delimitar o nosso número de suspeitos a… centenas», prosseguia Henrique sem se controlar. «Proprietário de uma fábrica de calçado!? Aqui não há outra coisa…!»
O Procurador num arremetimento de impaciência disse: «Calma! Há mais!»
Henrique pensava em mortes e noutras infelicidades num intento de controlar o riso que parecia irrefreável. Puxou de um lenço, todo amarfanhado, assoou o nariz, limpou as lágrimas, enquanto o Procurador numa fúria incontida despejava o conteúdo da sua pasta na, já de si atafulhada, secretária de Henrique. Por fim, encontrou um papel que ergueu esticando o braço, como um gladiador que empunha o facho antes que se profira a frase «Que os jogos comecem!»
«Está aqui…», disse o Procurador. «Tenho algumas descrições que poderão ajudar».
Henrique manteve-se calado.
«Ora… o nosso homem… humm…», exclamava o procurador enquanto reordenava um maço de folhas desgastadas pelo uso. E prosseguiu:
«Como dizia, o homem tem 45 anos de idade. É branco, bem constituído… físico de desportista, porventura! Tem 1 metro e noventa de altura…» As notas contidas nos papéis – cuja chancela era da Polícia Judiciária – iam sendo ditadas de forma quase aleatória, dada a hilariante balbúrdia que aumentava à medida que mais folhas se iam soltando. O Procurador retomou a descrição:
«Sabemos que esteve emigrado em França e que em tempos praticou andebol… era atleta federado.» Continuou a remexer nos papéis e urrou: «E chama-se José Pintor!»
«Bom!», disse Henrique interrompendo-o. «Já temos alguma coisa… mas, não há nenhum José Pintor residente nesta comarca…»
«Claro, isso já calculava», interrompeu o Procurador. «O nome é certamente falso».
«Sr. Procurador, permita-me uma pergunta…»
«Com certeza», respondeu o Procurador, como se concedesse uma indulgência divina.
«Como é que chegaram a essa descrição tão pormenorizada. Foi a…»
«Judite!», interrompeu o Procurador. «Sabe, o dito cujo e-mail dava muitas pistas que foram investigadas». «Mas», dizia depois o Procurador cerrando o cenho, «aqueles gajos disseram que as provas chegavam a nenhures, e convidaram-me ao arquivamento do caso». «Mas eu hei-de apanhá-lo. Aquele caralho não se verá livre de mim com dá cá aquela palha!», disse-o num tom tão exaltado e num nível decibéis tão acima do legalmente permitido, que a própria secretária de Henrique entrou sem bater à porta acompanhada de um funcionário judicial.
Henrique pediu-lhes que saíssem, porque estava tudo bem. Afinal era o Sr. Procurador que ali se encontrava.
Com o Procurador mais sossegado, Henrique disse:
«Pelas suas descrições, já eliminei uma porção de suspeitos. No entanto, temos um problema…!»
«Qual!?», perguntou o Procurador.
«Há duas pessoas que encaixam como uma luva nesse retrato». E antes que o Procurador falasse, Henrique disse:
«Proponho-lhe o seguinte. Hoje mesmo jantaremos em minha casa com os dois suspeitos. Eu trato dos convites. Topa?»

(continua)

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